domingo, 27 de setembro de 2020

DIVINA COMÉDIA






Erguendo os braços para o céu distante 
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante, 

Porque é que nos criastes?!Incessante 
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis, 
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis
N'um turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

«Porque é que para a dor nos evocastes?»
 Mas os deuses, com voz inda mais triste,
 Dizem:— «Homens! por que é que nos criastes?»


 Antero de Quental, in "Sonetos" 


Infelizmente, há quem faça essa pergunta, muitas vezes!

Emília Pinto

terça-feira, 15 de setembro de 2020

CANÇÃO DE OUTONO

 Imagem pixabay


Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi. 
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo 
sobre o próprio coração? 

E não pude levantá-la! 
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza 
é que sou triste e infeliz. 
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força 
estão velando e rogando
aqueles que não se levantarão... 

Tu és folha de outono 
voante pelo jardim. 
Deixo-te a minha saudade 
- a melhor parte de mim. 
E vou por este caminho, 
certa de que tudo é vão. 
Que tudo é menos que o vento, 
menos que as folhas do chão... 

 Cecília Meireles , Poesia completa: Volume 2. Rio de Janeiro:


Emociona, este belo poema!

Emília Pinto


terça-feira, 1 de setembro de 2020

REGRESSO


Quando eu voltar
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Creador!
Porque me deu, vida e amor,
para voltar...

Voltar... Ver de novo baloiçar
a fronde magestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar... 
Poder de novo respirar, 
(oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o humus vivificante do teu solo encerra!
Embriagar...
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol,
a dardejar calor,
transforma num inferno de cor..

Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monotono,
igual, do casario plano...
Hei-de ver outra vez 
as casuarinas a debruar o oceano...
Não mais o agitar fremente de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente destes ruidos... 
os meus sentidos
anseiam pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo
Sede...Tenho sede dos crepusculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quasi irreais...
Saudade...Tenho saudade do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçõeiras, das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via 
mas pressentia em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...
Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que mo impeça.
Com que prazer hei-de esquecer toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo a quem regressa...

Ah! quando eu voltar... 
Hão-de as acacias rubras,
a sangrar numa verbena sem fim,
florir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente, o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente, o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme
de poder enfim dizer:
Voltei!... 

Alda Lara -  poetisa Angolana
in- escritas,org.pt


Estou de regresso depois de uma longa pausa e as saudades deste cantinho já começavam a sentir-se Espero que gostem deste poema, nostálgico, mas muito belo; assim é também a saudade...

Emília Pinto