quinta-feira, 8 de julho de 2010

E NÓS TAMBÉM NÃO.....de certeza!





CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ



Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira - sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.



Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.

Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.



Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, umas coisas que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos - e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti - e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.



Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas - e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!".



É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua.

José Saramago

Ele não entendia! Tenho a certeza que nós também não entendemos como se consegue ser feliz com tão pouco. Penso que é esse o nosso mal. Adorei esta carta que me chegou às mãos através de uma amiga. Espero que também gostem!

Emília

19 comentários:

  1. Oi Emilia!
    Adorei esta carta à avó. Esta carta retrata a vida dos nossos avós, que não tiveram acesso à cultura,à vida, trabalharam de sol a sol, enrugados ,enrigecidos, pelo tempo, doridos, pela agrura da doçura que não tiveram, mas retrata a doçura , que queriam e deram amor, sentadas na soleira do porta a pensar no nada era o trabalho de sol a sol, e a frescura da noite , o sonho era o trabalho, não sabiam o que se passava , fora das portas, é sim uma carta fabulosa, nela que me revejo , seria a carta que dirigiria a à minha avá, mulher sofrida e de muito trabalho, mas uma pessoa meiga, que me marcou e de quem tenho imensa saudade, e foi dela que aprendi a dar.
    Não tenho a elequencia precisa para enaltecer Saramago, levou- me à infância, onde o pão se amassava e ia para o forno em grandes tabuleiros, onde o suor, pingava sobre o pão.Esta avó é mulher -retrato de quantas viveram naquele Portugal que saudade poder´+a haver daquele tempo em que a minlher n~sao tinha voz?
    Aí sim havia miséria.!
    Até breve
    Herminia

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  2. Acho, Hermínia que esta carta de Saramago nos levou a todas aos tempos da nossa infância; nos levou a rever as nossas avós com todos esses problemas, mas sempre com alegria no tanto que tinham para fazer e no pouco que recebiam da vida. Eram, no entanto felizes as nossas avós, precisamente porque davam valor ao pouco que tinham.Isso não acontece hoje em dia...temos muito e damos pouco valor ao que temos. Um beijinho e ainda bem que gostou
    Emília

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  3. Que carta tão bonita, também eu me identifiquei com ela e relembrei a minha avó querida. Obrigada.
    Bjns

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  4. Olá meninas, como vão? Adorei esta carta, e confesso que ser essa avo, me passa pelo pensamento. Imagine viver alheia neste mundo louco? É uma glória!
    Abraços brasileiros:)

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  5. Oi cuidandodemim. Adorei esta carta e penso que todos nós vamos lembrar de alguém assim.Um beijinho e um bom fim de semana
    Emília

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  6. Ro querida, que bom vê-la por cá! Também acho que conseguir-se viver alheado deste mundo louco e ser-se feliz com pequeninas coisas do dia a dia é uma graça. Pena que a maioria de nós não consiga sentir-se feliz com as coisas simples da vida! Um beijinho e um bom fim de semana
    Mila

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  7. Emilia, com certeza, carata é linda; valeu vc transcreve-la. É uma verdadeira pérola ler uma missiva dessas.

    Obrigado por nos brindar com tão belas postagens.

    Bj

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  8. Obrigada, J. Araújo pela visita. Ainda bem que gostou!Também acho óptima esta carta que a todos emociona. Um beijinho e que tudo lhe corra bem
    Emília

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  9. Esta carta a avó é linda mesmo. Sabe Herminia eu tenho consciencia de que podemos ser feliz com pouco, mas, no meu momento nem com pouco e nem com mais nada.
    Estou só, infinitamente só. Nada me resta que me faça remover dessa insana tristeza que se abateu na mh vida. Olho para meus vestidos no armario e me pergunto pra que servem se já não tenho mais aquele despertar de ter um compromisso com o trabalho, arrumar os cabelos e aparecer descentemente adequada para as vistas das pessoas, com as quais eu falava, pessoas que foram meu meio de comunicação com a rotina e as novidades do mundo. Ficou para trás pessoas que trabalharam comigo, e que agora não se lembram da Sonia que acompanhou e sofreu com elas durante anos os problemas pessoais, ajudando-nos mutuamente. É muito triste. Saí de um casamento de 20 anos para tentar uma vida nova que muito menos ainda deu certo. E agora está tudo estragado! Nada tem conserto dessa forma como tudo se transformou.Não sei ainda que farei da minha vida. Abraços, agradeço sua presença em meu blog.

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  10. Oi Sonia.Sei que vai demorar tempo até que descubra que os seus vestidos voltarão a ter utilidade.Todos os dias o sol nasce e tem que arranjar vontade para abrir o armário, escolher um belo vestido, arrumar os cabelos e sair para a rua; vai com certeza descobrir que ainda tem muito valor. Olhe não sei se vive em S. Paulo, mas se viver faça uma coisa; visite o blog o presente do presente, da minha amiga Rosário que luta há 4 anos contra um cancer; ela acabou agora de criar uma organização, o Bendizer para ajudar pessoas com cancer e seus familiares; é uma organização pequena, só com voluntários, mas que vai ajudar muita gente necessitada.Visite o blog, lá poderá ver as fotos do chá que fizeram para arranjar dinheiro para que possa começar a funcionar. Quem sabe a Sonia não terá aí um motivo para se arrumar todos os dias e preencher esse vazio qu sente agora que não tem o seu emprego?.O presente do presente vai mostrar-lhe que ainda tem muitos motivos para sorrir. Pense nisso Sonia e coragem, amiga, Um beijinho muito grande e até breve.
    Emília

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  11. Estas pessoas conseguiram ser mais felizes do que nós.
    Têm o ceu, o ar, a natureza que as completa.
    Adorei o texto.
    Beijinho

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  12. Pois é, cantinho, essas pessoas sabiam que a felicidade estava nas pequenas coisas, nos pequeninos gestos. Continua a estar só que nós ainda não entendemos isso. um beijinho e obrigada pela visita.
    Emília

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  13. Esta carta documenta o sentimento de todos os nossos avós, pelo menos dos que como nós já têm alguns bons anos de vida. Actualmente, este modo de estar, já foi ultrapassado pelo tempo, os avós evoluiram e já não se quedam por tão pouco que, afinal, era tanto...

    Beijinho
    Margarida

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  14. É certo, Margarida.As avós actuais já não são assim, já evoluiram e isso é muito bom; o que não é tão bom é que precisem de muito para se considerarem felizes; afinal temos muito mais e não damos o devido valor a isso. É uma pena!
    Um beijinho e obrigada pela visita
    Emília

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  15. Amiga Emilia!
    Que ternura esta carta.
    De facto, longe vai o tempo em que a pureza e simplicidade imperavam.
    As pessoas deste tempo aproveitavam e valorizavam o simples facto do sol brilhar, o vento que fazia baloiçar as verdura. Enfim, neste tempo tudo era tão puro. Hoje, muitos de nós não queremos ver e preferimos agarrarmos a coisas materiais e de pouca dura.
    Tanto que há para aproveitar, Viver e valorizar. Tal como diz a avó neste carta "O mundo é tão bonito!".

    Beijinhos

    Joana

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  16. O mundo é mesmo bonito, Joana, mas nós na nossa correria nem prestamos atenção; bom era que conseguissemos ver beleza nas pequenas coisas que o dia a dia nos mostra. Um beijinho e obrigada pela visita.
    Emília

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  17. É Emilia querida
    Tu parece me conhecer,ao sugerir a leitura ,pois adivinhavas que eu me emocionaria com ela.
    Fez-me lembrar acontecimentos de minha infância,fez-me lembrar que não é preciso saber tudo para entender que o mundo é lindo ,a vida rara e é MUITO bom estar a viver.

    Meu bem querer e minha gratidão,pelo carinho e sugestão.

    Quanto ao café oferecido,já me deste e tem me dado cada vez q venho aqui,muito mais q café,da-me carinho e conteúdo,de tantas coisas lindas que aqui encontro.
    te quero muito bem

    afagos

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  18. Muito obrigada, Denise pelas palavras sempre tão carinhosas.Fiquei feliz por ver que gostou da minha sugestão.Penso que esta carta diz muito a todos aqueles que têm mais ou menos a nossa idade. Hoje as avós já não são assim...já são mais evoluídas, o que é bom, mas nem sempre dão o devido valor ao muito que têm; esquecem-se que é preciso muito pouco para se ser felize e isso é mau. Um grande beijinho, Denise e qualquer dia apareço para o cafezinho do costume; me aguarde lá no seu cantinho!
    Emília

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  19. Ai, Emília, que texto bom do Saramago que você trouxe ao meu conhecimento; tem muita coisa dele ainda que quero - e algumas que não quis. Eu o entendo, eu o entendo.

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