sexta-feira, 23 de setembro de 2022

CANÇÃO DE OUTONO

 

Imagem Pixabay 


Perdoa-me, folha seca, 
não posso cuidar de ti. 
Vim para amar neste mundo, 
e até do amor me perdi. 
De que serviu tecer flores 
pelas areias do chão 
se havia gente dormindo 
sobre o próprio coração? 

E não pude levantá-la! 
Choro pelo que não fiz. 
E pela minha fraqueza 
é que sou triste e infeliz. 
Perdoa-me, folha seca! 
Meus olhos sem força 
estão velando e rogando aqueles 
que não se levantarão... 

Tu és folha de outono 
voante pelo jardim. 
Deixo-te a minha saudade 
- a melhor parte de mim. 
E vou por este caminho, 
certa de que tudo é vão. 
Que tudo é menos que o vento, 
menos que as folhas do chão... 

 Cecília Maireles, Poesia Completa, vol. II


....tudo é vão....tudo é menos que o vento....menos que as folhas no chão... 

Valemos tão pouco e há quem pense ser dono do mundo!!!!

Emília Pinto

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

A RACIONALIDADE......

 

Imagem da net



 .....IRRACIONAL 

 Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra? Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 

 José Saramago, in 'Diálogos com José Saramago'


 O ser humano tem muito a aprender com os ditos animais irracionais, mas...não aprende nada e, creio, continuará assim.

Emília Pinto