quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

VAMOS RECORDAR ?




 Viver assim: sem ciúmes, sem saudades,
 Sem amor, sem anseios, sem carinhos.
 Livre de angústias e felicidades,
 Deixando pelo chão rosas e espinhos;

Poder viver em todas as idades;
Poder andar por todos os caminhos;
Indiferente ao bem e às falsidades,
Confundindo chacais e passarinhos;

Passear pela terra, e achar tristonho
Tudo que em torno se vê, nela espalhado;
A vida olhar como através de um sonho;

Chegar onde eu cheguei, subir à altura
Onde agora me encontro - é ter chegado
Aos extremos da Paz e da Ventura!

Antero de Quental in " Sonetos "

Para mim foi mesmo um " RECORDAR ", pois há muito, muito tempo não lia nada da obra deste nosso grande escritor. Espero que gostem!

Emília Pinto

domingo, 11 de fevereiro de 2018

AMIGOS,







E  a todos vós dedico este lindo poema de Aniversário


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças
.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!... (Nem o acho... ) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes...
 O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
 O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos,
 É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

 Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
 Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
 Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias.
 Serei velho quando o for. Mais nada.
 Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
 O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

 Álvaro de Campos

....e hoje é tempo de se festejar o dia dos anos  do COMEÇAR DE NOVO; já são nove anos de vida e os amigos continuam presentes, acarinhando-o e incentivando-o a continuar..Para vós vão os PARABÉNS e o meu abraço de grande amizade

Emilia Pinto

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A VIDA




Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
 Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n'um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas De degredados!
Ó Quarta-feira de Trevas!
Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que allumiaes os prezos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outomnaes, cheios de Graça!
Olhos accezos como altares de novena!
Olhos de genio, aonde o Bardo molha a penna!
Ó carvões que accendeis o lume das velhinhas, Lume dos que no mar andam botando as linhas...
Ó pharolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pyrilampos a allumiar os caminhantes, Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Uncção final dos que se vão da Terra!
Ó janellas de treva, abertas no teu rosto!
Thuribulos de luar! Luas-cheias d'Agosto! Luas d'Estio! Luas negras de velludo!
Ó luas negras, cujo luar é tudo, tudo Quanto ha de branco: véus de noivas, cal Da ermida, velas do hiate, sol de Portugal, Linho de fiar, leite de nossas mães, mãos juntas Que têm erguidas entre cyrios, as defuntas! Consoladores dos Afílictos!
Ó olhos, Portas Do Céu!Ó olhos sem bulir como agoas-mortas! Olhos ophelicos!
Dois soes, que dão sombrinha... Que são em preto os Olhos Verdes de Joanninha...
Olhos tranquillos e serenos como pias!
Olhos Christãos a orar, a orar Ave Marias Cheias de Luz!
Olhos sem par e sem irmãos, Aos quaes estendo, toda a hora, as frias mâos!
Estrellas do pastor! Olhos silenciozos, E milagrozos, e misericordiozos
Com os teus olhos nunca ha noites sem luar, Mesmo no inverno, com chuva e a relampejar!
Olhos negros! vós sois duas noites fechadas, Ó olhos negros! como o céu das trovoadas...
Mas dize, meu amor! ó Dona de olhos taes! De que te serve ter uns astros sem eguaes?
Olha em redor, poiza os teus olhos! O que ves? O mar a uivar! A espuma verde das marés! Escarros! A traição, o odio, a agonia, a inveja! Toda uma cathedral de lutas, uma igreja A arder entre clarões de coleras! O orgulho Insupportavel tal o meu, e o sol de Julho!
Jezus! Jezus! quantos doentinhos sem botica!
Quantos lares sem lume e quanta gente rica!
Quantos reis em palacio e quanta alma sem ferias!
Quantas torturas! Quantas Londres de mizerias!
Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças!
Quantos suores sem proveito! quantas taças A trasbordar veneno em espumantes boccas!
Quantos martyrios, ai! quantas cabeças loucas, N'este macomio do Planeta!
E as orfandades! E os vapores no mar, doidos, ás tempestades!
E os defuntos, meu Deus! que o vento traz á praia!
E aquella que não sae por ter uzada a saia! E os que sossobram entre a vaidade e o dever!
E os que têm, amanhã, uma lettra a vencer!
Olha essa procissão que passa: um torturado De Infinito!
Um rapaz que ama sem ser amado, E para ser feliz fez todos os esforços...
Olha as insomnias d'uma noite de remorsos, Como dez annos de prizão maior-cellular!
Olha esse tysico a tossir, á beira-mar...
Olha o bébé que teve Torre de coral
De lindas illuzões, mas que uma aguia, afinal, Devorou, pois, ao vel-a ao longe, avermelhada, Cuidou, ingenua! que era carne ensanguentada!
Quantos são, hoje? Horror! A lembrança das datas... Olha essas rugas que têm certos diplomatas! Olha esse olhar que têm os homens da politica!
Olha um artista a ler, soluçando, uma critica...
Olha esse que não tem talento e o julga ter
E aquelle outro que o tem... mas não sabe escrever!
Olha, acolá, a Estupidez! Olha a Vaidade!
Olha os Afflictos! A Mentira na Verdade!
Olha um filho a espancar o pae que tem cem annos! Olha um moço a chorar seus crueis desenganos! Olha o nome de Deus, cuspido n'um jornal!
Olha aquelle que habita uma Torre de sal,
Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas, Mas de outras que chorou, de lagrymas salgadas! Olha um velhinho a carregar com a farinha E o filho no arraial, jogando a vermelhinha!
Olha a sair a barra a galera _Gentil_ E a Anna a chorar p'lo João que parte p'ro Brazil!
Olha, acolá, no caes uma outra como chora: É o marido, um ladrão, que vae «p'la barra fóra!»
Olha esta noiva amortalhada, n'um caixão...
Jezus! Jezus! Jezus! o que hi vae de afflicção!
Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos, Ó flor sem elles! que tu tens tão lindos olhos!
 Ah! foi para isto que te deu leite a tua ama, Foi para ver, coitada! essa bola de lama
Que pelo espaço vae, leve como a andorinha, A Terra!
Ó meu amor! antes fosses ceguinha...


 António Nobre, in 'Só'


 Este escritor nasceu em 1867 e até aos dias de hoje a nossa Lingua Portuguesa tem sofrido várias transformações continuando a ser uma lingua bela e muito rica; como língua viva que é, muda e evolui, mas...o que dizer do mundo em que vivemos? Como mostra este poema, as desgraças continuam as mesmas.

 Emília Pinto